terça-feira, outubro 19, 2010

Contrariedades Humanas

A virginiana e a iraniana



Os ocidentais se dessensibilizaram com o grande número de execuções legais efetivadas nos Estados Unidos. Entretanto, nos horroriza a ideia de que uma mulher possa morrer no Irã, massacrada por uma chuva de pedras.


No mês passado, Teresa Lewis foi executada na Virgínia com uma injeção letal. Ninguém será punido por seu assassinato porque ela foi condenada à morte legalmente: tinha planejado o assassinato de marido e o do filho adotivo – o que, logicamente, é ilegal – e os que a mataram , consequentemente, atuaram com a bênção das autoridades.

Talvez devêssemos reformular o sexto mandamento para um que afirme: "Não matarás sem permissão". Afinal, durante séculos temos venerado as bandeiras dos soldados que, estando em guerra, têm licença para matar, como James Bond.

E, agora, comenta-se que o presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad respondeu aos pedidos ocidentais de clemência para uma suposta adúltera condenada a morrer apedrejada – o castigo foi suspenso, mas as autoridades afirmam que ele continua sendo uma possibilidade – dizendo, essencialmente, o seguinte: "Vocês reclamam porque queremos matar legalmente uma mulher iraniana quando matam legalmente uma norte-americana".

Uma objeção à lógica de Ahmadinejad é que a norte-americana orquestrou o assassinato de seu marido, enquanto a iraniana, Sakineh Mohammadi Ashtiani, apenas foi infiel. A norte-americana morreu sem dor, enquanto a iraniana corre o risco de morrer de forma brutalmente dolorosa. Mas uma resposta desse tipo implica duas coisas: que enquanto uma adúltera não deveria ser punida mais do que com uma separação legal, sem direito à pensão, é aceitável castigar assassinos com a pena capital – desde que o método de execução não seja muito doloroso.

Se nosso julgamento não estivesse tão nublado, talvez víssemos a questão mais ampla: nem os assassinos devem ser condenados à morte, nem as sociedades devem matar os seus cidadãos, mesmo depois de um devido processo e mesmo se a execução for relativamente indolor.

Como responderiam os cidadãos dos países democráticos ao líder de um país bastante antidemocrático quando nos pede que não critiquemos a pena capital no Irã, já que alguns deles também possuem castigos mortais cruéis?

A situação é bem embaraçosa e gostaria de saber se esses ocidentais (em cujas fileiras se encontra a primeira-dama da França, Carla Bruni-Sarkozy) que protestam contra a pena de morte do Irã, também protestaram contra a dos Estados Unidos. Suspeito que a maioria não.

Os ocidentais se dessensibilizaram com o grande número de execuções legais nos Estados Unidos. Entretanto, nos horroriza a ideia de que uma mulher morra no Irã massacrada por uma chuva de pedras. Logicamente não sou imune a isso: quando me enviaram um pedido para que me manifestasse contra o apedrejamento de Ashtiani, assinei-o de imediato.

Ao mesmo tempo, passei por cima do fato de que a virginiana Teresa Lewis ia ser executada.

Nós, os ocidentais, teríamos protestado com a mesma intensidade se Ashtiani tivesse sido condenada a morrer por injeção letal? Ficamos indignados com o apedrejamento ou com a execução de infratores do sétimo mandamento – "Não cometerás adultério" – em lugar do sexto? Não tenho certeza, mas o fato é que as reações humanas muitas vezes são instintivas e irracionais.

Em agosto último encontrei um site na internet que descrevia várias formas de cozinhar um gato. Sem se importar se era brincadeira ou algo sério, os defensores dos direitos dos animais ergueram a voz em todo o mundo.

Adoro os gatos. São uma das poucas criaturas que não se deixam ser exploradas por seus donos – ao contrário, exploram-nos com um cinismo olímpico – e seu afeto pela casa prefigura uma forma de patriotismo. Assim, ficaria repugnado se me oferecessem um prato de guisado de gato. Por outro lado, os coelhos me parecem tão lindos quanto os gatos – e ainda assim os como sem nenhum escrúpulo.

Escandaliza-me ver cachorros passeando livremente em suas casas chinesas, brincando com as crianças, quando todo mundo sabe que serão comidos no final do ano. Mas os porcos – animais bastante inteligentes, segundo me dizem – perambulam pelos sítios ocidentais e poucas pessoas se preocupam com o fato de que eles vão virar presunto. O que nos leva a considerar incomíveis certos animais, quando os antropomorfizamos, enquanto outras criaturas adoráveis – bezerros, por exemplo, ou cordeirinhos – nos parecem bem apetitosas?

Nós, humanos, somos animais bastante estranhos, capazes de muito amor e de um cinismo assustador, tão dispostos a proteger um peixinho dourado quanto a ferver uma lagosta viva, esmagar uma centopeia sem remorsos e chamar de bárbaro quem mata uma borboleta. De mesma forma, aplicamos uma moral dupla quando enfrentamos as penas capitais: nos escandalizamos com uma e fazemos vista grossa à outra.

Algumas vezes me sinto tentado a concordar com o escritor romeno Emil Mihai Cioran, que afirmou que a Criação, tendo escapado das mãos de Deus, deve ter ficado a cargo de um demiurgo: um trapalhão desajeitado, talvez um pouco bêbado, que se pôs a trabalhar tendo em mente algumas ideias bastante confusas.

(Umberto Eco - 17/10/2010)

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