quinta-feira, maio 01, 2008

Retalhos de uma vida ...II

No período em que frequentei a faculdade ainda valiam as consequências do Ato AI - 5, onde não se tinha liberdade pra nada, tudo era censurado, vigiado.


Estava no início de namoro com aquele a quem me casei alguns meses depois. Um dia ele foi me buscar na faculdade, aula de Latim, professora muito brava, dona da Cadeira da Matéria, não nos dispensou no horário previsto. Ele subiu até a sala onde eu estava, abriu a porta aos berros e fez o maior estardalhaço, tentando me arrancar da sala de aula. A professora se retirou e foi se queixar na Diretoria.

No dia seguinte fui chamada para prestar esclarecimentos, uma verdadeira "inquisição" sobre ele, quem era, o que fazia, onde trabalhava, enfim... Durante muito tempo tive a minha vida, a da minha familia e a dele vigiadas. Foi um horror mas , nada aconteceu...

Casei-me com este homem por imposição dos meus pais. Fiquei grávida não por acaso. Foi tudo planejado, dia, hora, período fértil ... Eu queria ter um filho maas não queria me casar. Uma produção independente.

Mas como sou filha de filho de italiano, a filha mais velha, quase matei meus pais de desgosto, principalmente minha mãe. Meu pai mandou meus irmãos ir buscá-lo para que ele "reparasse" o erro... Eles não sabiam que era o sonho da minha vida ter um filho!

Em função disso acabei casando só no Civil. E na hora de responder quase disse não, não estava preparada ainda para o casamento. Mais uma vez pensei nos meus pais.

Tive minha primeira filha tres meses após meu casamento. Foi um parto difícil, complicado, quase perdi a vida e o meu bebê também. Meu marido teve que chamar a polícia para que me fizessem a Cesariana. Depois, voltei para casa com meu pai por que meu marido encheu a cara e não conseguiu levantar cedo para a visita no hospital. Papai foi me ver e eu estava com alta...

Depois disso uma sucessão de fatos foi tornando minha vida um tanto morna, sem graça, sem perspectiva. Tinha um marido alcoólatra e uma criança pequena para criar. Voltei a trabalhar contra a vontade dele. Pensava em me separar mas o que eu ganhava era pouco e não queria voltar para a casa dos meus pais.

Nesse ínterim tive um problema no seio, o médico suspendeu o anti-concepcional e foi aí que fiquei grávida pela segunda vez. Neste momento minhas chances de separação se tornaram zero. Se com um filho já era difícil imaginem com duas crianças...

Mas a vida ao lado dele era muito complicada , difícil...ele era uma pessoa muito inteligente, bom caráter, bom homem, mas quando bebia se tornava agressivo, inconveniente, arrogante, perigoso ...tudo o que eu abomino num ser humano.... Nossa relação era cada vez mais insuportável...

Apesar de estar casada era como se não fosse. Eu cuidava de tudo sozinha...ia em reunões da escola, levava as crianças ao médico, para brincar, passear, enfim, era como se não tivesse marido. Em parte foi bom pois aprendi a viver só e resolver tudo também.

Quando minha filha mais velha estava com sete anos mudamos para Recife. Morei durante dois anos. Apesar de adorar a cidade tivemos que voltar pois ele não se adaptou. Estive lá agora em março, nas minhas férias, passei em frente ao prédio onde morávamos...Quanta saudade, não da situação, mas dos momentos em que minhas filhas eram pequenas e brincavam no parquinho
daquele prédio ....

Não deu certo nossa estada nesta cidade pois ele se tornou mais que um viciado, ele não conseguia mais trabalhar de tanto beber. Voltamos e começamos do zero. Ele foi trabalhar numa multinacional em Sorocaba, ia na segunda-feira e voltava no sábado de manhã pra casa.

Um dia aconteceu algo inesperado... ele veio numa quarta-feira à noite. Justamente num dia que tinha acontecido uma tragédia...Minha filha mais velha estava com muita febre e eu não quis deixá-la com a empregada. Levei as duas para minha mãe e deixei o carro com meu pai para uma emergência. À tarde fui de carona do trabalho até minha casa.


Não quis dormir longe das pequenas, quando a gente tá doente quer o colo da mãe, não é? Imagine uma criança...Me arrumei e fui tomar o ônibus para a casa da mamãe. Vi que chegou um rapaz, com topete estilo John Travolta, calça jeans e jaqueta de nylon, pois era julho e fazia muito frio. Ele chegou e ficou ali esperando o ônibus também. Quando o veículo estava se aproximando me dirigi até a calçada e dei sinal para o motorista parar. Foi aí que ele me deu uma gravata no pescoço, fiquei com dor por um bom tempo. Não me soltou , pediu para deixar o ônibus passar e
falou que era um assalto.

Fomos andando até atravessar uma ponte de um riozinho, eu morava do lado de cá e fomos para o lado de lá. Ele sempre falando que era um assalto, vamos ali, vamos ali e eu achando mesmo que era um assalto. Passamos por algumas pessoas, um homem com uma criança, tive vontade de gritar mas fiquei com medo dele atirar e ferir alguém, pois trazia um revolver dentro do bolso da jaqueta.

Chegando em frente a um muro, ao redor de um matagal, aí é que fui entender o que estava para acontecer. Tinha um buraco no muro e ele me ordenou que entrasse ali. Fiquei em estado de choque, queria gritar mas a voz não saía. Atravessei aquele buraco e no meio de todo aquele mato eu imaginava que ele iria me matar e ninguém iria me encontrar... Era capim alto, não dava pra ver nada. Neste momento fiz minha prece : pedi a Deus que ele fizesse tudo o que quisesse comigo mas, que me deixasse com vida, pois minhas filhas eram pequenas e precisavam de mim. Elas não tinham com quem ficar , o pai delas era um doente, um alcólatra. Eu não podia morrer...

E então ele me ordenou uma série de coisas, ameaçando-me, mostrando-me a arma, me mordeu muito, machucou-me muito...Imaginem um homem drogado, furioso, com aqueles olhos fulminantes... Não, vocês não conseguem imaginar o que é...tudo o que pensarem é pouca em vista do que aconteceu....E ele ainda falava comigo, perguntava se eu gozava com meu marido, coisas do tipo....

Bem, depois de tudo, ele me deixou me vestir, olhou o que eu tinha na bolsa, dinheiro, relógio, documentos, e não quis nada. Mandou-me embora sem olhar para trás e ficou lá...Aí achei que fosse atirar pelas costas...Eu estava em estado de choque, não conseguia emitir um só som....Tentei correr mas as pernas não me obedeciam...

Quando saí daquele lugar, pisei na rua, aí sim comecei a chorar desesperadamente....voltei para casa, fui na vizinha do andar de cima e ela não entendia nada porque eu só chorava e pedia para ela ligar para minha mãe... Chorei horas sem fim...

Vieram meus pais e um dos meus irmãos... me pegaram na vizinha, fui para o meu apartamento, tomei um banho de quase tres horas....parece-me que a sujeira que fica não sai...Meu irmão tinha um amigo obstetra, ligou para ele vir me ver...O médico me examinou e disse que atendia vários casos de estupro por dia no hospital de Itaquera, onde ele trabalhava. Se eu quisesse fazer um boletim de ocorrência ele atestava o ocorrido mas teria que fazer um exame , passar por todas aquelas humilhações na polícia... Achei melhor não fazer nada mesmo por que não iria aliviar o meu sofrimento. Só se eu conseguisse encontrar o desgraçado....

Esta foi minha terceira benção ...apesar de tudo o que houve .Deus me deixou viva como pedí e eu agradecí...

E neste momento entra meu marido, ficando surpreso com tudo . Nem preciso dizer que, se o nosso casamento já era ruim , a partir deste momento passou a não existir mais. Eu não o queria por que estava traumatizada e ele se sentiu marido traído, achando que eu poderia ter gostado mais do cara do que dele...

Foram momentos muito tristes da minha vida... Superei este trauma com muita terapia e mesmo assim, depois de muito tempo. Hoje falo sem dor, quase sem emoção para que as mulheres fiquem atentas... que prestem mais atenção a tudo que acontece ao seu redor... Até este momento eu nunca imaginei que pudesse me acontecer...Via, ouvia na televisão mas nunca pensei que um dia me aconteceria...

E assim caminha a humanidade....Permaneci casada por mais alguns anos até que não deu mais...Eu estava ficando doente por causa dele...Não trabalhava, só bebia, eu tinha que sair correndo do trabalho e ir pra casa, pois as meninas chegavam do colégio e eu tinha medo que ele fizesse alguma coisa contra elas...Uma droga de vida!

Vendemos nosso apartamento, dividimos a grana, fui morar de aluguel. Uma das minhas preocuçaões com a separação era o medo de que ele se tornasse morador de rua. Ele não tinha ninguém eu não queria que isto acontecesse...afinal , era o pai das minhas filhas, com todos os problemas e aborrecimentos que tínhamos....

E não deu outra... gastou o dinheiro da venda com bebida, mulheres e foi morar na rua. Depois de muito tempo tivemos contato com ele, estava com tuberculose. Acabou sendo internado em Campos do Jordão, no Sanatorinhos. Levei as meninas para visitarem o pai no hospital e ajudar no que fosse preciso : roupas, sapatos, tenis, remédios....Ficou durante um ano e tres meses.

Ao sair, foi parar na rua de novo. Levaram de volta a São Vicente. É de praxe , eles levam a pessoa para o lugar de onde retiraram. Foi então que resolvi pagar uma pensão para ele. Pedi que procurasse um lugar para dormr, lavar as roupas e comer. Eu fazia uma remessa postal e ele sacava o dinheiro no correio, pois não tinha conta bancária. E sabia que , se não pagasse a pensão ia pra debaixo da ponte...

E foi assim até dois anos atrás...Março de 2006. Ele sofreu um acidente de moto na sexta-feira de carnaval entrou em coma, vindo a falecer no dia 19 de março. Eu estava em Fortaleza, Ceará, passando férias com duas amigas...Apesar de tudo, torci muito por ele... queria mesmo que ele saísse desta com vida...mas, acho que sua missão tinha chegado ao fim... Não pude participar de nada, minhas filhas e meu irmão que providenciaram tudo...Cheguei de viagem dois dias depois do enterro.

Gostaria de dizer ainda que, depois que me separei, minha vida foi do trabalho pra casa, da casa pro trabalho. Tinha as meninas para educar, criar e não tinha espaço para ninguém mais... Hoje penso diferente, poderia ter encontrado uma outra pessoa ... não tive muitos amores não, foram bem poucos... Alguns apenas, mas foram verdadeiros...

Eu quis postar minha vida aqui para que as pessoas possam olhar para suas vidas e agradecer por tudo que têm e conquistaram...E que possam ter a certeza de que tudo é possível quando queremos... Apesar de todos os problemas que enfrentei tive dignidade para prosseguir esta jornada...

Hoje, quando olho para minha vida lá distante e as pessoas acham que sempre tive tudo , nem imaginam quanto sofrimento passei. Graças a Deus estou muito bem hoje, minhas filhas quase se formando na faculdade, vivo com dignidade, com meu trabalho. Nunca tive ajuda de ninguém a não ser "Daquele" lá de cima. E agradeço por todos os dias da minha vida!

E tenham certeza, faria tudo novamente... e como diz na minha numerologia, estou no "Mestrado" da minha espiritualidade... Talvez não volte mais...

Eu só queria encontrar "você", Baby, para minha felicidade ser mágica!

Se alguém quiser comentar alguma coisa esteja à vontade...

Abraços!

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