quinta-feira, agosto 09, 2007

"A águia que (quase) virou galinha"

"O tempo está chegando em que o homem não mais lançará a flecha do seu desejo para além de si mesmo e a corda do seu arco se esquecerá de como vibrar ...O tempo está chegando em que o homem não mais dará à luz de uma estrela. O tempo do mais desprezível dos homens."

(Nietzsche)


A idéia desta estória não é minha. Meu é só o jeito de contar ...
Sobre uma águia que foi criada num galinheiro.
E foi aprendendo sobre o jeito galináceo de ser, de pensar, de ciscar a terra, de comer milho, de dormir em poleiros... e, na medida em que aprendia, ia esquecendo as poucas lembranças que lhe restavam do passado. É sempre assim : todo aprendizado exige um esquecimento...
E ela desaprendeu o cume das montanhas, os vôos nas nuvens, os frios nas alturas, a vista se perdendo no horizonte, o delicioso sentimento de dignidade e liberdade...

Como não havia ninguém que lhe falasse destas coisas e todas as galinhas cacarejassem os mesmos catecismos, ela acabou por acreditar que ela não passava de uma galinha com perturbação hormonal - tudo grande demais, aquele bico curvo, sinal certo de acromegalia.

Um dia apareceu por lá um homem que vivera nas montanhas e vira o vôo orgulhoso das águias.

"Que você faz aqui?"
"Este é o meu lugar", ela respondeu. "Todo mundo sabe que galinhas vivem em galinheiros, comem milho, ciscam o chão, botam ovos, e finalmente viram canja : nada se perde. Utilidade total".
"Mas você não é uma galinha", ele disse. "É uma águia".
"De jeito nenhum. Águia voa alto. Eu nem sequer voar sei. Para dizer a verdade, nem quero. A altura me dá vertigens. É mais seguro ir andando passo a passo..."

E não houve argumento que mudasse a cabeça da águia esquecida. Até que o homem, não aguentando mais ver aquela coisa triste, uma águia transformada em galinha, agarrou-a a força e a levou até o alto de uma montanha.

A pobre águia começou a cacarejar de terror, mas o homem não teve compaixão : jogou-a no vazio do abismo. Foi então que o pavor, misturado a memórias que ainda moravam em seu corpo, fez a asas baterem, a princípio em pânico, mas pouco a pouco com tranquila dignidade, até se abrirem confiantes, reconhecendo aquele espaço imenso que lhe fora roubado. E ela finalmente compreendeu que seu nome não era galinha, mas águia.

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