sexta-feira, setembro 19, 2008

Do mundo virtual ao espiritual

(Frei Betto)

Outrora, falava-se em realidade:
análise da realidade, inserir-se na realidade, conhecer a realidade.
Hoje, a palavra é virtualidade.
Tudo é virtual...
Ao viajar pelo Oriente, mantive contatos com monges do Tibete, da Mongólia,
do Japão e da China.
Eram homens serenos, comedidos, recolhidos em paz em seus mantos cor de
açafrão.
Outro dia, eu observava o movimento do aeroporto de São Paulo: a sala de
espera cheia de executivos com telefones celulares, preocupados, ansiosos,
geralmente comendo mais do que deviam.
Com certeza, já haviam tomado café da manhã em casa, mas como a companhia
aérea oferecia um outro café, todos comiam vorazmente.
Aquilo me fez refletir: "Qual dos dois modelos produz felicidade?"
Encontrei Daniela, 10 anos, no elevador, às nove da manhã, e perguntei:
- "Não foi à aula?"
Ela respondeu:
- "Não, tenho aula à tarde".
Comemorei:
- "Que bom, então de manhã você pode brincar, dormir até mais
tarde".
- "Não", retrucou ela, "tenho tanta coisa de manhã..."
- "Que tanta coisa?", perguntei.
- "Aulas de inglês, de balé, de pintura, piscina", e começou a
elencar seu
programa de garota robotizada.
Fiquei pensando:
"Que pena, a Daniela não disse "tenho aula de meditação"!
Estamos construindo super-homens e super-mulheres, totalmente equipados,
mas emocionalmente infantilizados.
Por isso, as empresas consideram agora que, mais importante que o QI, é a
IE, a Inteligência Emocional.
Não adianta ser um super-executivo se não consegue se relacionar com as
pessoas.
Ora, como seria importante os currículos escolares incluírem aulas de
meditação!
Uma progressista cidade do interior de São Paulo tinha, em 1960, seis
livrarias e uma academia de ginástica; hoje, tem sessenta academias de
ginástica e três livrarias!
Não tenho nada contra malhar o corpo, mas me preocupo com a desproporção em
relação à malhação do espírito.
Acho ótimo, vamos todos morrer esbeltos:
"Como estava o defunto"?
"Olha, uma maravilha, não tinha uma celulite"!
Mas como fica a questão da subjetividade?
Da espiritualidade? Da ociosidade amorosa?
Outrora, falava-se em realidade: análise da realidade, inserir-se na
realidade, conhecer a realidade.
Hoje, a palavra é virtualidade. Tudo é virtual.
Pode-se fazer sexo virtual pela internet: não se pega Aids, não há
envolvimento emocional, controla-se no mouse.
Trancado em seu quarto, em Brasília, um homem pode ter uma amiga íntima em
Tóquio, sem nenhuma preocupação de conhecer o seu vizinho de prédio ou
de
quadra!
Tudo é virtual, entramos na virtualidade de todos os valores, não há
compromisso com o real!
É muito grave esse processo de abstração da linguagem, de sentimentos:
somos místicos virtuais, religiosos virtuais, cidadãos virtuais.
Enquanto isso, a realidade vai por outro lado, pois somos também eticamente
virtuais.
A cultura começa onde a natureza termina.
Cultura é o refinamento do espírito.
Televisão, no Brasil - com raras e honrosas exceções - é um problema:
a
cada semana que passa temos a sensação de que ficamos um pouco menos
cultos.
A palavra hoje é ‘entretenimento’; domingo, então, é o dia nacional
da
imbecilização coletiva.
Imbecil o apresentador, imbecil quem vai lá e se apresenta no palco,
imbecil quem perde a tarde diante da tela.
Como a publicidade não consegue vender felicidade, passa a ilusão de que
felicidade é o resultado da soma de prazeres:
"Se tomar este refrigerante, vestir este tênis, usar esta camisa,
comprar
este carro, você chega lá!"
O problema é que, em geral, não se chega!
Quem cede, desenvolve de tal maneira o desejo que acaba precisando de um
analista.
Ou de remédios.
Quem resiste, aumenta a neurose.
Os psicanalistas tentam descobrir o que fazer com o desejo dos seus
pacientes.
Colocá-los aonde?
Eu, que não sou da área, posso me dar o direito de apresentar uma sugestão.
Acho que só há uma saída: virar o desejo para dentro.
Porque para fora ele não tem aonde ir!
O grande desafio é virar o desejo para dentro, gostar de si mesmo, começar
a ver o quanto é bom ser livre de todo esse condicionamento globalizante,
neoliberal, consumista. Assim, pode-se viver melhor.
Aliás, para uma boa saúde mental três requisitos são
indispensáveis:
amizades, auto-estima, ausência de estresse.
Há uma lógica religiosa no consumismo pós-moderno.
Se alguém vai à Europa e visita uma pequena cidade onde há uma catedral,
deve procurar saber a história daquela cidade - a catedral é o sinal de que
ela tem história.
Na Idade Média, as cidades adquiriam status construindo uma catedral; hoje,
no
Brasil, constrói-se um shopping center.
É curioso: a maioria dos shopping centers tem linhas arquitetônicas de
catedrais estilizadas; neles não se pode ir de qualquer maneira, é preciso
vestir roupa de missa de domingo.
E ali dentro sente-se uma sensação paradisíaca: não há mendigos,
crianças
de rua, sujeira pelas calçadas...
Entra-se naqueles claustros ao som do gregoriano pós-moderno, aquela
musiquinha de esperar dentista.
Observam-se os vários nichos, todas aquelas capelas com os veneráveis
objetos de consumo, acolitados por belas sacerdotisas.
Quem pode comprar à vista, sente-se no reino dos céus.
Se deve passar cheque pré-datado, pagar a crédito, entrar no cheque
especial, sente-se no purgatório.
Mas se não pode comprar, certamente vai se sentir no inferno...
Felizmente, terminam todos na eucaristia pós-moderna, irmanados na mesma
mesa, com o mesmo suco e o mesmo hambúrguer do McDonald’s…
Costumo advertir os balconistas que me cercam à porta das lojas:
- "Estou apenas fazendo um passeio socrático."
Diante de seus olhares espantados, explico:
- "Sócrates, filósofo grego, também gostava de descansar a
cabeça
percorrendo o centro comercial de Atenas. Quando vendedores como vocês o
assediavam, ele respondia: "Estou apenas observando quanta coisa existe
de
que não preciso para ser feliz".
Frei Betto é escritor, autor,
em parceria com Luis Fernando Veríssimo e outros,
de "O desafio Ético"
(Garamond),
entre outros livros.

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